O Regimento Geral da USP atualmente em vigor, que data de 1990, manteve, em suas disposições transitórias, a vigência do “Regime Disciplinar” estabelecido pelo Regimento Geral anterior, datado de 1972. Tratando-se de disposições normativas que regulam um “Regime Disciplinar”, é importante lembrar que, em 1972, a ditadura civil-militar por que passava o país vivia o auge de seu endurecimento tanto no que se refere à criação de uma legislação autoritária que dilacerava garantias e direitos civis (como o direito de associação e a garantia do habeas corpus) quanto no que diz respeito ao aumento no número de prisões, cassações, exonerações, torturas, desaparecimentos, entre outras práticas associadas à repressão política naquele período.
Coerente com aquele contexto, o “Regime Disciplinar” ainda hoje em vigor na USP “visa assegurar, manter e preservar a boa ordem, o respeito, os bons costumes e preceitos morais” (caput do artigo 247); prevê entre suas sanções a “eliminação definitiva” (inciso IV do artigo 249) para atos resguardados pela Constituição Federal de 1988 enquanto garantias fundamentais, a exemplo da liberdade de pensamento, de expressão e o exercício do direito de greve; possibilita a aplicação das sanções de advertência e repreensão sem prévio processo administrativo (§ 1º do artigo 248); entre outras disposições empertigadas de ranços autoritários. Não causa assombro que muitas das disposições deste “Regime Disciplinar” da USP já foram consideradas incidentalmente[1] como inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (por exemplo, na Apelação com Revisão nº 9127727-52.2001.8.26.0000; Rel. Des. Oscarlino Moeller; DOE 11/10/2005) e pelo Supremo Tribunal Federal (também apenas para citar um exemplo, no RE 172.587/SP).
Entretanto, o que era tido como “disposições transitórias” pelo Regimento Geral da USP atualmente em vigor tornou-se permanente, de modo que hoje, passados mais de 20 anos de sua edição, a comunidade universitária, sobretudo os alunos, continua a estar suscetível à responsabilização administrativa pelas infrações e sanções ali previstas. Sobretudo os alunos, porque o Estatuto dos Servidores da USP (ESU) prevê infrações e sanções administrativas específicas para os servidores não docentes da Universidade e submete os servidores docentes, no que diz respeito também a seus deveres e obrigações, ao Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo. Contudo, tanto esta lei, datada de 1968, quanto o ESU, de 1966, também são documentos em boa medida eivados de disposições normativas que não elidem seu anacronismo diante do avanço dos direitos civis por que passou o país nas últimas décadas.
A USP tem a prerrogativa institucional de regulamentar normas específicas sobre convivência, infrações, processo e sanções administrativas aplicáveis a seus membros. Além disso, o país vive um contexto de instauração de várias Comissões da Verdade, inclusive uma nesta própria Universidade, o que tem promovido uma ampliação do debate na cena pública a respeito das violações do passado e das continuidades institucionais no presente de autoritarismos e arbitrariedades herdados do regime civil-militar. O contexto é, neste sentido, altamente propício para uma nova regulamentação da convivência, dos deveres e das obrigações dos membros de toda a comunidade uspiana.
Se a USP quiser ser coerente com sua história de vanguarda em vários campos que permeiam a vida pública no país, desde a ciência e a tecnologia, passando por questões de ética e sociabilidade, precisa definitivamente revogar seu antigo “Regime Disciplinar” e adotar um Manual de Convivência que, mais do que regular infrações e sanções, tenha como principais objetivos proporcionar uma convivência respeitosa da pluralidade de seus membros e, no caso da existência de conflitos, vise, em primeiro lugar e acima de tudo, o entendimento e a resolução consensual entre as partes.
[1] A inconstitucionalidade incidental de uma disposição normativa é a inconstitucionalidade que só tem validade para as partes envolvidas em determinado processo. A inconstitucionalidade incidental difere da inconstitucionalidade in abstracto, que realmente declara a norma como não mais aplicável para quem quer que seja. A inconstitucionalidade in abstracto só pode ser demandada por algumas entidades especificadas pela Constituição, como o Ministério Público, Partidos Políticos, etc.
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